26 de março de 2010

Palavras que ferem, palavras que salvam

Imagem de Getty Images

Por Roberto Pompeu de Toledo


"Posso ajudar?" Eis duas palavrinhas que nos soam mais que familiares. Entra-se numa loja e lá vem: "Posso ajudar?". Está desencadeado um processo durante o qual não mais conseguiremos nos livrar da prestimosa oferta. Ao entrar numa loja, o ser humano necessita de um tempo de contemplação. Precisa se acostumar ao novo ambiente, testar a nova luminosidade, respirar com calma o novo ar. Sobretudo, necessita de solidão para, por meio de um diálogo consigo mesmo, distinguir entre os objetos expostos aquele que mais de perto fala à sua necessidade, ao seu gosto ou ao seu desejo. A turma do "posso ajudar" não deixa. Mesmo que se diga "Não, obrigado; primeiro quero examinar o que há na loja", ela só aparentemente entregará os pontos. Ficará por perto, olhando de esguelha, como policial desconfiado.

Onde a situação atinge proporção mais dramática é nas livrarias. Livraria é por excelência lugar que convida ao exame solitário das mesas e das prateleiras. É lugar para passar lentamente os olhos sobre as capas, apanhar e sentir nas mãos um ou outro volume, abrir um ou outro para testar um parágrafo. Um jornal certa vez avaliou como critério de qualidade das livrarias a rapidez com que o atendente se apresentava ao freguês. Clamoroso equívoco. Boa é a livraria em que o atendente só se apresenta quando o freguês o convoca. As melhores, sabiamente, dispensam o "posso ajudar". As mais mal administradas, desconhecedoras da natureza de seu ramo de negócio, insistem nele.

Ainda se fossem outras as palavrinhas – "Posso servi-lo? Precisa de alguma informação?" Não; o escolhido é o "posso ajudar", traduzido direto do jargão dos atendentes americanos ("May I help you?"). A má tradução das expressões comerciais americanas já cometeu uma devastação no idioma ao propagar o doentio surto de gerúndios ("Vou estar providenciando", "Posso estar examinando") que, do telemarketing, contaminou outros setores da linguagem corrente. O "posso ajudar" é caso parecido. Tal qual soa em português, mais merecia respostas como: "Pode, sim. Meu carro está com o pneu furado. Você pode trocá-lo?". Ou: "Está quase na hora de buscar meu filho na escola. Você faz isso por mim? Assim me dedico às compras com mais sossego".

Pode haver algo mais irritante do que o "posso ajudar"? Pode. É o "é só aguardar". Este é próprio dos lugares em que se é obrigado a esperar para ser atendido – o banco, o INSS, o hospital, o cartório, o Detran, a delegacia da Polícia Federal em que se vai buscar o passaporte. Ou bem há uma mocinha distribuindo senhas ou um mocinho organizando a fila. Chega-se, a mocinha dá a senha, o mocinho aponta o lugar na fila, e tanto a mocinha quanto o mocinho dirão em seguida: "Agora é só aguardar".

Só? Só mesmo? O que vocês estão dizendo é que o mais difícil, que foi apanhar essa senha ou ouvir a instrução sobre em qual fila entrar – ações que não me custaram mais que alguns segundos –, já passou? Agora é só gozar as delícias desta sala de espera, mais apinhada do que a Faixa de Gaza? Ou apreciar as maravilhas desta fila, comprida como a Muralha da China? Um traço característico da turma do "é só aguardar" é que ela nunca cometerá a descortesia de dizer "é só esperar". Seus chefes lhes ensinaram que é mais delicado, menos penoso, "aguardar" do que "esperar". É um pouco como quando se diz que fulano "faleceu", em vez de dizer que "morreu". A crença geral é que quem falece morre menos do que quem morre. No mínimo, morre de modo menos drástico e acachapante.

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Há outras ocasiões em que o uso inábil da língua vem em nosso socorro. Exemplos:

"Foi movido contra você um processo nº 01239/2009 por danos morais, conforme a Lei nº 9.099, na segunda vara penal. Caso não compareça no lugar especificado no arquivo em anexo poderá implicar em chamada de segunda instância e/ou recolhimento da sociedade".

"Todos os clientes MasterCard, devem recadastrar o seu cartão em 72 horas. Este procedimento está sendo ocorrido mundialmente. Caso nosso sistema não reconhecer o recadastramento, ele bloqueia o cartão, isto é, ficando impossibilitado de novas compras. Clique no link abaixo e recadastre".

Quem frequenta a internet sabe do que se trata: e-mails de golpistas, ladrões de senhas. Quando não oferecem outros indícios, eles se denunciam pelo incontornável costume de estropiar o idioma. Que bom que a escola brasileira é tão ruim.


Publicado na Revista Veja, 25/03/2009